sábado, 9 de agosto de 2008

COTIDIANO

"Minha cabeça dói muito hoje." Ela acordou cansada e sabia que o resto do dia seria assim. Os olhos num quase fechar-se denunciariam a noite mal dormida, mas não era a habitual cara-de-ressaca-de-festa-boa. A cara, e não só ela, mas também a mente e o coração eram de quem estava prestes a se entregar.
Sentia-se burra e desconfiante de si, não sabia mais o que queria nem quem era, e achou tudo isso tão banal e pós-moderno que resolveu parar de sentir pena de si mesma.
Levantou da cama com aquela música de despertador alucinando sua cabeça, as coisas em volta giravam e ela via pontinhos estrelados como via muitas vezes em outras situações cheias de prazer. Tomou café e odiou tudo o que engolia, que continha o sabor amargo de todo dia. Sentiu um enjôo e o gosto nojento de vômito vindo a levou às pressas para o banheiro. Vomitava aquilo tudo que engolira hoje, ontem e sempre.
Ela agora poderia estar pensando que se transformaria numa barata, porque sabia os sintomas e porque sua cabeça tinha um ritmo doido que a fazia pensar mil coisas absurdas num segundo. Mas hoje pensava em nada. Pensava no nada que era a sua e a vida de milhões de outras pessoas. Pensava a que lugar chegaria sendo esse nada que era. Era tão nada e nada continuaria sendo que sabia o tamanho de sua banalidade no mundo, e sabia que essa era mais uma crise infernal que resolve chegar nos momentos em que mais precisa de forças..e tinha certeza de sua banalidade.
O que pessoas não banais fazem, o que elas pensam? Quem não é banal?
Demorou mais uma hora e meia naqueles pensamentos não funcionais enquanto se arrumava para ninguém. Saiu de casa naquele ritmo acelerado, indo para nenhum lugar, ou para o mesmo lugar de sempre, automática, inconsciente. O coração ainda apertava no peito sem dizer porque, o estômago ainda revolvia, e as pernas continuavam andando em total descompasso, o corpo todo não demonstrava coerência nenhuma com sua mente. Atravessando ruas, passava por figurinos interessantes que talvez escondiam a mediocridade interna daquelas pessoas.
Chorou mais, chorou intensamente no meio da rua, sem explicação nem entendimento. Queria descobrir o que movia o mundo, o que fazia todas aquelas pessoas sairem para a rua tão cedo e voltar para casa tão tarde, sem nenhum prazer, sem...
Voltou para casa, dormiu até não sentir mais sono e voltou a dormir. E quando acordou, cansada de dormir, foi até a janela, olhou a imensidão no céu, a escuridão da noite, as luzes do aeroporto brilhando...E sorriu.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Todas as vezes aquilo acontecia: meu coração disparava, minhas mãos tremiam e suavam durante quase duas horas. Eu sabia que mil vezes fosse ali, mil vezes sairia com as pernas bambas, como se houvesse sido agredida. No entanto, era uma sensação tão gostosa. Eu sentia a vibração daquelas milhares de pessoas com os olhos arregalados, sentia o chão tremer, parecia que tudo ao meu redor desmoronaria e, ao mesmo tempo, havia uma espera angustiante por trás de tanta euforia.

Era minha paixão. Quem não gosta de futebol pouco pode compreender de um amor tão fiel, capaz de durar toda a vida. Poucas paixões eram tão duradouras: a de namorados terminava em meses, ou até mesmo semanas. A de esposos, por mais que durasse, não tinha a garantia de fidelidade eterna, assim como a de irmãos, amigos. Nenhuma poderia ser tão intensa, duradoura e avassaladora como essa.

Quarta-feira, 21h45min. Apita o juiz. As palmas na arquibancada começam e, pouco a pouco, contagiam uma torcida inteira. O vermelho vibrante me emociona, meus olhos já começam a encher de lágrimas. Sei que ainda não é hora de extravasar as emoções, mas era essa minha vontade. Atenção total em cada lance, o olho capta cada movimento da bola e consegue também observar tudo em volta dela. Meu olho já está treinado a essas situações. Agora consigo ver a jogada em campo e o outro lado da arquibancada. Procuro meu ídolo em meio a tantos jogadores, pois sei que ele é capaz de ser imprevisível e aparecer de onde menos espera-se.

De repente, a monotonia é o destaque do jogo. Passes errados, poucas chances de gol, o público sentado. Tédio. Esse é o brilhante mundo do futebol, pensava eu. Tudo se encaminha para um empate sem brilho. Fim do primeiro tempo.

Na segunda etapa tudo volta a brilhar. As mesmas sensações percorrem meu corpo, como a indicar algo que está por acontecer. As chances de gol aumentam, meu coração volta a bater, como o coração do estádio, que vibra na intensidade daquela torcida.

Olho o relógio: 40 minutos já se passaram, nada mudou no placar. Impaciente, procuro o chão com os olhos, algo aperta o meu peito. Não sinto as pernas, nem tampouco os braços. Penso em entregar-me à fraqueza, mas a vontade de continuar sentindo aquela emoção louca é maior.

No milésimo de segundo em que pensava tudo isto, meu olhar se desprendeu da bola, do campo – perdi meu ídolo de vista – meu coração acelerou, o público gritava algo quase incompreensível, minhas mãos formigavam, minha vista embaçou. Gooooooooool!

Tudo estava decidido: o jogo, o futuro do meu time naquela competição, a paixão que inundava a alma de cada torcedor ali e em outras partes do mundo e, lamentavelmente, minha nova vida de torcedor, até então habituado ao agito próximo ao campo.

Não fui capaz de segurar a fraqueza naquele momento. E o coração, cotidianamente entregue às maiores emoções, me impedia agora de voltar ao estádio.

sábado, 3 de maio de 2008

E o mês das tempestades resolveu aparecer...

Cá estou, após muita resistência, a escrever na internet, abandonando meus bloquinhos de anotação, que já andam amarelados pela estante. Curioso, esse texto anterior foi o primeiro que consegui escrever, na íntegra, pelo computador. Arcaico, não? Confesso que sou um tanto avessa à modernidade, normal, mas logo acabo cedendo, como cedo agora.
E essa chuva que, com tanta violência, me aquieta em casa, aninhada com meu muchachito, me inspira a escrever...

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Sempre tive a ligeira idéia de que só a sorte trazia felicidade. Algo como “elas andam lado a lado”, sabe? Como se nessa corrida louca que é a vida só as pessoas afortunadas chegassem na reta final vitoriosas, e para isso contavam com uma ajudazinha do destino. O mais curioso disso é que eu, de fato, não estava incluída nesse seleto grupo de “sortudos” que, sem fazer esforço algum, alcançavam tudo o que queriam. Era como se, para esses, o simples fato de desejar fosse sinônimo de acontecer. E eu comparava minha sorte, ou falta dela, com os acontecimentos mágicos da vida de minhas amigas, procurando entender porque nada acontecia facilmente para mim.

Se o bingo na escola sorteava brindes que toda criança queria, eu não ganhava nada, ou levava para casa um lindo imã de geladeira para minha mãe. Se minha equipe nas gincanas entrava como favorita, saía como o azarão. E dos infortúnios clássicos da infância, passei para a adolescência sem muito ver minha estrela brilhar, e só aí notei que o acaso não andava ao meu lado.

Constatado o problema, me restava encontrar a solução. E tentando encontrá-la, me conformei pensando em talvez alcançar tudo que me realizava por outro caminho, que não o da sorte. Acreditei, então, que eu deveria ser compensada de alguma forma, assim como cegos têm outros sentidos aguçados, minha total falta de sorte poderia ao menos me dar algo em troca. E, creio eu, meu “prêmio” veio em forma de memória. Mas, longe de ser qualquer memória, a minha era excepcional, quem sabe para que eu pudesse lembrar para sempre de todos os meus azares? E foi assim durante todos os anos, lembrava datas e detalhes de situações, verões, passeios, brincadeiras; associava perfeitamente fisionomias aos seus nomes e os locais onde conhecia pessoas pouco importantes ou pouco marcantes. Além de impressionar a mim mesma e a todos à minha volta com esse “dom”, eu ajudava-os a recordarem de certas ocasiões e de pessoas dos mais diversos lugares.

Foi a partir desse momento que criei teorias envolvendo sorte, memória e felicidade, pois notei que minha grande amiga e eu juntas éramos a personificação daquelas. Se eu tinha muito azar e muita memória e minha amiga era possuidora do famoso “bumbum virado pra lua”, mas não possuía capacidade de recordação alguma, só podia ser verdade que quem ganha um pouco de sorte deve ceder algo. No meu caso e no dela, então, a memória entrava em jogo. E enquanto eu delirava nas minhas hipóteses, elas foram inesperadamente tornando-se reais.

Passei a poder tranqüilamente chegar na parada de ônibus e saber que não acabava de perdê-lo, pelo contrário, ele chegava na hora exata em que eu precisava. A chuva não me pegava mais desprevenida, podendo eu sair de casa sem sombrinha e ela parar quando eu fosse me deslocar. O que eu perdia, encontrava; quando precisava, me encontrava na hora e local certos, onde as pessoas certas estavam, os momentos aconteciam, pois, como mágica. Era a sorte que andava ao meu lado agora, fazendo a minha vida acontecer da forma que eu desejava. E esse sempre fora meu ideal de felicidade.

Não decidi abrir mão daquilo que julgava ser uma das minhas maiores características, mas, inevitavelmente, passei um pouco da minha capacidade de registro àquela cujo destino estava um tanto facilitado, no exato momento em que me tornei uma pessoa de sorte. Creio que apenas me foi emprestado seu mar de chances, pois logo tive que devolvê-lo. Sim, finalmente havia me tornado a pessoa de sorte que queria, mas eu já não lembrava das coisas da mesma forma e isso passou a me incomodar. Mesmo assim eu me divertia com a situação, brincando com todos que bastava encostar em mim para ter mais sorte. Será que não foi assim que a perdi novamente?

De qualquer forma, apesar da rapidez dos acontecimentos e de tão logo ter voltado à minha sina, procuro hoje me divertir com essa história um tanto mágica e com os insucessos do dia-a-dia. Quanto à minha amiga, continua a mesma desmemoriada de sempre, e jura não ter problemas com seus lapsos de esquecimento.

Não provoco mais o destino, deixei de lado as teorias e tão pouco desejo trocar de lugar com qualquer “agraciado” pela vida. Afinal, como dizem, não é bom dar sorte para o azar.